“ Comigo viu-se doida a anatomia/ sou todo um coração.”
MAIAKÓVSKI
SAUDADE
O cinema no Brasil perdeu o viés poético da beleza. Ou o Pancadão fatura com a violência como espetáculo, ou se descobre cafetão de peruas e canastrões televisivos. Ora, vender sexo artificial collorido como imagem burra, da visibilidade ao não-conteúdo como significação porca e baixa do: – Mas dá dinheiro! E o público que paga é tratado como gado. É o tal do cinema do capital! Não falo como crítico ou ressentido pois tenho uma obra que vai toda ela, no sentido contrário do lixo industrial de seres deslumbrados, opacos e traidores sem responsabilidade alguma para com o cinema, a história e a própria vida que ainda pensam ser um filme de Hollywood.
Servos da não-intensidade, servis a prostituição e ao capital. E no que justificam a escravidão, reintroduzem o fascismo como espetáculo rasteiro como solução para uma indústria de confetes. Confundindo como sempre alegria real com a vulgaridade de suas vidas de “cinéfilos” sem posição alguma. E na realidade uma transmissão velada de uma multiplicidade de horrores televisivos devidamente divinizados. E, é na glorificação de uma falsa visão e análise da comédia/burra vendida como popular que os excessos de horrores se multiplicam ao infinito.
Ora, se antes o cinema e os cineastas queriam mudar o mundo e a história, hoje a aceitam tal como está, sem discussão alguma. É o fascismo como questão fundamental das imagens paridas pelo rabo! Bem, sempre achei que o cinema fosse uma atividade séria e não um prostíbulo de afetados e deslumbrados sem formação humana e política alguma. A ditadura de 64 construiu esse velho Brasil retomado uma vez mais parecido e piorado em 2016. É o Brasil da ilegitimidade, da cegueira cultural, do desespero, da dor e da aceitação do fascismo sem crítica alguma. Felizmente nunca fiz a menor questão de ser gostado ou estar próximo desse tipo de gentalha!
Prazeirosamente no sentido contrário dessas retinas apodrecidas, um curta-metragem como leitura histórica dos afetos vivos ou vividos na doce família Saraceni. Cartas pensadas e escritas por vidas comuns: o pai, a mãe, os irmãos, os amigos… e do outro lado no velho Continente o filho, o irmão Paulo Cesar descobrindo o mundo das imagens do cinema. Ainda ontem em “Arraial do Cabo”. Tempos depois na terra de Rosselini. O cinema sendo vivido como escolha de vida e ofício poético. “Saudade” são cartas de amor lidas por amigos queridos e próximos ainda hoje.
E nelas o gosto pelo lado humano volta a ser pensado com inteligência e sensibilidade. É preciso sim, um jeito poético de suportar a ausência do filho ao amigo, sem se sentirem infelizes. E é aí que a luz da saudade tornam-se cartas e depois com o passar do tempo, um filme delicado e ousado feito por Renata Saraceni sua sobrinha. Lembrando muito pela postura, o rigoroso cinema dos Straubs. “Saudade” é um filme de formação do humano onde “a retina faz contemporâneas todas as coisas”, como diria Paul Valéry em seus “Maus Pensamentos”.
As cartas como imagem e poesia. Um pequeno/grande filme de formação onde a história dá os seus sinais de movimento com a mudança da capital, a fundação de Brasília e as eleições se aproximando. E se de um lado as palavras de muitas cartas são doces e preocupadas, a ambição das imagens feitas num outro tempo são mais substanciais e complexas subvertendo o conceito da ausência, no papel de um possível personagem. Em “Saudade” Renata ao filmar tantas cartas não hierarquiza nada, Tudo passa a fazer parte de deslocamentos históricos de Roma nas palavras enviadas, ao Parque Laje onde se viveu tanto o cinema de Glauber a Joaquim Pedro. O curta tenta sim dialetizar um espaço entre as palavras e as imagens numa tentativa de compreender o racha da ausência definuitiva de seu tio Paulo.
Para concluir: “Saudade” tematiza sim aproximações e distâncias. É também um arco-íris em forma de ponte entre tempos distintos: hoje o passado, e ainda ontem o presente. O lado “injusto” da separação numa reafirmação de afetos. O cinema religando histórias, encontros e o espetáculo surdo de peripécias na Itália que fazia o melhor cinema depois de Eisenstein e Vertov. O Brasil mudava a capital e Paulo Cesar esboçava futuros. Todavia escrevia pouco e a família naturalmente reclamava. Queria participar de algum modo das descobertas do jovem cineasta.
Marília Alvim lida com todo material com segurança, profundidade e maestria desempenhando com a sua montagem, uma evidenciação de encontros e afetos. Rege a edição (ou montagem, como queiram) agindo e servindo sobre o material dando-lhe raios brilhantes de tempos, luzes e movimentos. Fazendo da dureza da saudade real, densidades poéticas da arte do cinema. E de certo modo um filme doce para todos. Com atores e música bem afinados na proposta de cartas que são muito bem lidas. Renata Saraceni e sua jovem equipe filmam a essência de um tempo que passou!
Eis pois o último encontro! A transcendência real da dor da perda definitiva, numa montagem primorosa e rigorosa. A dança que se faz presente, assim como o longo plano de Santeiro caminhando na floresta da vida, são sublimes. Ou seja, não existe tensão ou desconforto, e sim potências poéticas. Confesso meu encantamento pelo filme. Imagens e enquadramentos que me fizeram pensar nestes tempos de perdas e sofrimentos. Ainda ontem Paulo Cesar. Hoje Tonacci. Só nos cabendo carregar o vazio sofrido da triste política do país. E ainda assim um filme capaz de afetar poeticamente a quem o vê, movendo-se no tempo da história de todos que não traíram!
Mas não interessa a Renata Saraceni uma ilustração do passado, mas a sua superação. O cinema como sendo a sua catarse poética de superação definitiva da perda. O longo plano de Sergio Santeiro no Parque Laje, é quase uma apropriação simbólica de um rico pensamento de Tadashi Edo que diz: “ Um corpo tem muitos corpos dentro de si.” Ou seja, é só que temos que enfrentar: a vida, as dores, as perdas e a própria morte. Morte que encerra o tempo e a história dos que partem.
FIM
2017
LUIZ ROSEMBERG FILHO